O Dogma do Sacrifício Ritualístico
“Desde a mais remota antiguidade o homem realiza sacrifícios como forma de catarse ou para agradar os Deuses. São conhecidos o bloco no qual Akhenaton (aws) é retratado sacrificando um pato ao Disco Solar; as passagens bíblicas e islâmicas, respectivamente, como Abrahão com a faca suspensa sobre a vida do próprio filho, Isaac, ou como Ibrahim, o Pai de todos os profetas (Deus intervém a tempo de sustar a consumação do homicídio).”
A PERGUNTA é: O que levaria o homem a supor que matando um ser ou se privando de algo alcançaria as benesses sonhadas que o conduziriam num tapete mágico ao extase supremo da paz mental através da exaustão das realizações no mundo material, que lhe seria propiciada pela Divindade alvo do ofertório? Sim, o que levaria o homem a tal suposição se a própria Divindade a ser bajulada intervém e impede que o absurdo se consume, segundo a história (ou o mito)? Pelo visto o homem primeiro cria a Divindade à sua imagem humana e lhe empresta seu ego; a seguir infere que a Divindade é assim/assado, gosta disso/daquilo e tem de ser agradada desse ou daquele modo; então a própria Divindade vem e diz: “Não, pára com
isso, não é nada disso!” e chama o homem à razão.
Tudo isso pode levar a se pensar que por trás da criação mental do homem haja algo no controle e esse algo dá corda até certo ponto. É aí justamente que termina o livre-arbítrio e a interferência divina dá a decisão final. No fim das contas tudo não passava de um teste. É dentro desse contexto surrealista (?) que o dogma do sacrifício tem de ser mastigado, engolido, digerido e vomitado. Nessa regurgitação algo sobra: a certeza interior de que há um caminho para cima, para um Plano Superior, mas que essa senda está envolta em densa neblina e é noite escura, sempre.
Mas nem tudo são trevas espessas: lá no Alto simbólico a Luz brilha. Tudo o que se tem de fazer é olhar para esse farol místico e meditar, propondo-se a questão a si próprio, como se o eu não existisse, como se fosse apenas um reflexo fantasmagórico em um espelho sujo do sangue dos inocentes. O sangue derramado ritualisticamente, iniciaticamente, pelo sacrifício, em nome de várias propostas: agradar os Deuses, fazer a vontade de Deus, purificar, purgar os males na totalidade pela concentração da destruição em uma vítima específica, seja ela una como Jesus ou coletiva como os que estavam no World Trade Center.
A Igreja conseguiu a proeza de tornar o sacrifício ritualístico aceitável perante a moral das massas: tudo se resume em comer uma hóstia e beber vinho. A transubstanciação, pela consagração, repete não apenas a Santa Ceia, mas recria repetidamente a imolação do Cordeiro de Deus para que seu sangue simbólico lave os males verdadeiros purificando a Humanidade. Ninguém morre realmente, nenhum sangue de verdade é derramado. O dogma do sacrifício é cristalizado na denominação oficial: “O Santo Sacrifício da Missa”. Poucos compreendem o profundo significado desse ato altamente mágico-teúrgico, refinadamente esotérico.
Não o esoterismo superficial, periférico, que mesmo não sendo exoterismo é aberto a todos, mas o esoterismo voltado para a iniciação interior, secreta. Daí porque o Cânon indubitavelmente veio do Alto, não foi simplesmente compilado por um burocrata da religião ou do misticismo-hobby, coisa inacreditável, mas bem antiga. Mas a figura do sacrifício como meio-de não pára aí, ela se estende, se amplia, assume variadíssimas formas: ora uma faca degola um animal, ou arranca o coração vivo de um homem; ora alguém ou um grupo se automutila ou se mata ritualisticamente; ou então são feitas oferendas, mais brandas, e privações são passadas, tudo para que os que estão no controle, lá em cima, sejam aplacados, e para que os que estão aqui em baixo sejam purificados, purgados.
A carga de culpa, o sentimento de culpa, não é uma coisa
absolutamente judaica ou cristã ocidental: é uma realidade humana, uma condição latente, uma coisa que é logo definida como kármica: “houve um pecado inicial e é preciso fazer uma compensação”. Toda essa concepção primária advém da falta de
compreensão e é justamente por isso que a Iniciação é necessária. Somente a Iniciação pode abrir as portas da percepção. Quando isso acontece, percebe-se, então, o real sentido do sacrifício, em que ele verdadeiramente consiste e porque existe na mente humana.
Do pato de Akhenaton ao World Trade Center, passando pelos kamikazes montados em suas bombas voadoras e pelos sacrifícios humanos dos incas, traçamos uma longa reta, em uma direção, a qual é subitamente cortada por outra: a morte ritualística do Cristo. No centro dessa cruz, a Rosa de Hiroshima, tragicamente declamada por Ney Matogrosso, que interpreta a dor do mundo no altar iniciático do Plano Terra.
Nessa estranha e assustadora Rosa+Cruz projetada da vida material para o espaço imaterial da dimensão nihilista passa-se pela concepção apocalíptica do mundo e pela,interpretação alquímica para a evolução dos seres. Chega-se ao postulado Rosacruz da transformação da consciência pela digestão mística de infortúnios, alegrias e revelações: eis que as rosas florescem na cruz de cada um, segundo a capacidade de cada qual de compreender o significado iniciático dos sacrifícios do dia-a-dia.
Então os esoteristas da modernidade, com suas organizações iniciáticas recentes ou escolas de estudo montadas sobre o estudo de livros sagrados ou tratados esotéricos que mesclam Egito, Tibet, Europa e tudo o mais procuram desesperadamente novas versões para o sacrifício ritualístico de Jesus e querem que a Cruz lhe seja retirada, para a plasmação de uma nova imagem, a do Deus Vivo, destituído da componente dolorosa.
Em que estariam pensando realmente os tripulantes do Enola Gay quando fizeram desabrochar a anti-rosa atômica sobre a Humanidade indefesa? Que crenças profundas nutriam os terroristas que arremeteram aviões sequestrados contra as Torres Gêmeas? Estariam ambos a serviço daquilo que eles acreditam ser Deus? Cristãos e muçulmanos condenam os sacrifícios de seres vivos (apenas os chamados animais são considerados; nem en passant os teóricos religiosos se dignam a considerar que vegetais ou minerais possam ter vida, e muito menos vida consciente, ou que possam sentir dor ou uma perda). Entretanto, cristãos se matam entre si na Irlanda e judeus e islâmicos travam uma guerra especialmente brutal.
Os mesmos brancos que olham com desprezo para o asogun que empunha o obé do sacrifício de sangue no recôndito do roncol do Candomblé reeditam hoje, na América, a religião Kemetica, por não mais suportar a exaltação da morte na cruz como forma de purgação dos males da condição humana. É interessante ver como os ocidentais brancos que jamais conseguiram se libertar do Crucificado sugam os valores esotéricos dos negros e dos asiáticos, na esperança de construírem um mundo melhor ou de simplesmente demonstrarem para si próprios que já não necessitam do Cristianismo.
Tentam fazer crer que Akhenaton não era negro, que Maat é uma deusa branca, e que a Ankh de Maat é uma cruz. Essa evidência por si só demontra claramente o medo, o pavor que a Humanidade sente diante do sofrimento. Quanto aos brancos, simplesmente não conseguem admitir que haja deuses negros. Leiam o que o professor Manu Ampim escreve sobre as fraudes no Egito. Todos querem a felicidade, aqui e agora, e cada um a interpreta e concebe a seu modo. Em nome desse estado excelso, tão desejado, os maiores absurdos são praticados todos os dias. Usinas de mentira funcionam a todo vapor sobre esse sofisma – a felicidade perene, aqui e agora – e milhões de laudas de palavrório inútil são produzidas, publicadas e repassadas, todos os dias, por todos os meios de comunicação: o lixo da Torre de Babel.
Vou terminar essa postagem em uma segunda parte…